Projeto de alfabetização ‘Sal da Terra’ começou para que mães conseguissem ensinar os filhos
O projeto de alfabetização “Educação Construindo Cidadania”, desenvolvido por meio do grupo de voluntários “Sal da Terra”, tem uma trajetória de mais de 30 anos, transformando a vida de muitos homens e mulheres que não tiveram a oportunidade de alfabetização quando mais jovens. A ideia surgiu, principalmente, para suprir as necessidades de mães que não conseguiam ensinar os filhos em casa. “As mães não conseguiam desenvolver um trabalho melhor com os filhos devido à falta de escolaridade. Isso limitava em tudo”, conta a presidente da Associação Sal da Terra, Maria José Nascimento.
O projeto surgiu de uma necessidade sentida e percebida por irmãs da Irlanda que vieram ao Brasil fazer um projeto religioso. Elas procuravam as comunidades mais carentes e, portanto, se instalaram na favela Bola na Rede, no bairro dos Novais. “Ela percebeu que as mulheres, principalmente, e as pessoas do entorno que elas trabalhavam, não sabiam ler nem escrever”, conta Maria José. A dificuldade em escrever e ler impactava diretamente na participação e no desenvolvimento das atividades da pastoral da criança, onde mães não conseguiam contribuir plenamente para o progresso educacional de seus filhos.
Pensando nisso, elas abriram três salas de aula e escolheram para ensinar alguém que, além de estar envolvido com o trabalho na comunidade, conhecesse os moradores e pudesse proporcionar a alfabetização. O projeto começou de forma modesta, mas com uma grande missão: promover a educação e, consequentemente, a cidadania.
Quando Maria José foi convidada a participar, não relutou. Trabalhava em outro projeto, mas entendeu que também precisava ajudar o grupo.
“E, ao chegar, eu senti que elas não tinham uma preocupação maior em sistematizar a experiência. Elas tinham tudo oral, sabiam quantas turmas tinha, mas isso não estava sistematizado. Então eu comecei também a arrumar um pouco isso. Então a gente tem isso hoje, essa história toda sistematizada e organizada, contada não só oralmente, mas no texto que a gente divulga e manda para as pessoas. Então a partir daí a gente foi crescendo”, detalha a presidente da Associação Sal da Terra, Maria José.
Atualmente, o projeto social voluntário funciona para homens e mulheres em uma sala no bairro do Varadouro, ainda com poucos recursos e apoio. “O recurso que vem para nós limita o número de salas que a gente abre. Então a gente paga uma bolsa de voluntariado para os professores, porque a gente não tem como registrar, não tem como dizer que é contrato. Então é um contrato de voluntariado que a gente dá para o professor uma ajuda de custo, e que garante a ele uma formação com base boa da pedagogia”, explica Maria José.
A falta de suporte mais robusto continua sendo um desafio significativo, mas o compromisso e a confiança da comunidade no projeto permanecem.
Estatísticas que contam histórias
De acordo com dados do IBGE referentes ao Censo Demográfico de 2022, o último divulgado, analisados pelo Núcleo de Dados da Rede Paraíba de Comunicação, 84,4% da população paraibana, com 15 anos ou mais, é alfabetizada. Isso significa que mais de 500 mil pessoas não estiveram em uma escola. Uma dura realidade enfrentada por diferentes grupos, principalmente entre os 15 e 19 anos de idade.
Duas cidades da Paraíba aparecem na lista dos dez municípios com os maiores índices deanalfabetismo do Brasil: São Domingos, na oitava posição e Vieirópolis, na décima posição. João Pessoa está entre as regiões metropolitanas do Brasil com a maior taxa de analfabetismo: Um índice de 7,6%, de acordo com a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílio (PNAD), divulgada pelo IBGE.
Em Cabedelo, o índice de pessoas alfabetizadas é de 91,48%, caindo um pouco em Bayeux, com 87,22%, e em Santa Rita, com 85,62%. Já em Campina Grande, segunda maior cidade da Paraíba, o indicador é parecido com o da capital: as pessoas alfabetizadas correspondem a 91,97% da população com 15 anos ou mais.
Além disso, as mulheres são mais alfabetizadas que os homens. A taxa entre o sexo feminino é de 86,6%, enquanto entre os homens é de 81,32%. Celso Bezerra, de 48 anos, precisou largar os estudos ainda criança para poder trabalhar e ajudar a família com as despesas de casa. Mais de trinta anos depois, foi para ajudar o filho nas tarefas escolares que ele se sentiu motivado a retornar para a sala de aula. E para conseguir uma oportunidade no mercado já que, atualmente, ele está desempregado.
“Eu me vi na obrigação de voltar a estudar, para dar um incentivo dentro de casa. Meu maior foco é continuar estudando para passar informações para o meu filho. No início eu fiquei com muito medo, mas estive sempre confiante”, conta.
Histórias das estatísticas
Celso assiste aula na sala onde o professor Raniery Abrantes aplica conhecimentos sobre a literatura de cordel para os alunos da EJA. Espaço dividido também com Maria de Lourdes que, aos 55 anos, retomou os estudos para realizar o sonho de cursar Serviço Social.
“Fui mãe muito cedo e não pude trabalhar nem estudar, meu esposo não deixava”, conta. Mas, foi quando os filhos cresceram e o casamento acabou, que a mulher, finalmente, viu a oportunidade de voltar a estudar, há quase três anos. Algo que ela não fazia desde 1989. “Agora eu vou estudar! Já estou terminando”, comemora Maria de Lourdes, que mora com a filha mais velha e a neta Mirela, de oito anos. A criança acompanha a avó na rotina de estudos porque a mãe sai para trabalhar no turno da noite. Uma rotina familiar em que, para atingir os objetivos, todos tem se ajudado.
Um cenário desafiador em que o acesso à educação é desigual para homens e mulheres, brancos ou pretos, pobres e ricos. O Censo 2022 mostra que as pessoas alfabetizadas são, em maioria, brancas ou pardas e têm, principalmente, entre 25 anos e 54 anos.
Maria de Jesus, de 48 anos, é uma mulher negra e também traz uma narrativa para essas estatísticas. Ela está em processo de alfabetização, por meio do grupo de voluntários “Sal da Terra”, que desenvolve o projeto “Educação Construindo Cidadania”. A organização não governamental existe há mais de 30 anos e funciona em João Pessoa, Bayeux, Cabedelo e no município de Juarez Távora, no Agreste do estado. Para ela, que perdeu incontáveis oportunidades de trabalho por não ter tido acesso à educação de base, escrever o próprio nome é passar a enxergar.
“Eu antes não enxergava, né? Porque quando a gente não sabe ler nem escrever, a gente não enxerga. Agora, eu posso ver”, disse Maria, emocionada.
Ela, que antes sentia dificuldades até de tomar os próprios remédios, já que não compreendia o que estava escrito na receita, passou a se sentir muito mais capaz, ao ter autonomia sobre tantos setores da vida que foram sendo deixados de lado ao longo do caminho, em um universo onde as políticas públicas e o acesso ao básico, custam a chegar. Ou, simplesmente, não chegam.
Diagnóstico social
De acordo com a especialista em educação do Fundo das Nações Unidas para a Infância (UNICEF), Verônica Bezerra, “existe um fenômeno na educação brasileira e, também, paraibana, muito importante de se observar, porque está relacionado ao acesso das crianças à escola e a permanência com qualidade. O Brasil transita entre essas duas questões. Navegar entre essas duas pontas é uma urgência a ser enfrentada”, explica.
Mas, a grande pergunta é: quem são esses meninos e meninas? A especialista analisa que são crianças que vivem em um cenário de pobreza, em famílias que têm meio salário mínimo como renda per capita. Pretos, pardos, indígenas, quilombolas… são, muitas vezes, vítimas de violência.
“Tem meninas que saem da escola porque engravidam, porque trocam a escola pelo trabalho. Então, é preciso que exista um diálogo para melhorar o ambiente escolar, pois isso passaria pela compreensão de que é necessário pensar outros fenômenos, inclusive, a transição positiva para um trabalho decente, que se comunique com os sonhos e as múltiplas adolescências que temos na Paraíba e em nosso país como um todo”, enfatiza.
Nesse cenário mais amplo, o Nordeste continua sendo a região com o maior índice de analfabetismo do país: 14,2%, o dobro da média nacional, que é de 7%.
Uma realidade que também é desafiadora para os educadores. A professora Ana Rosa faz parte do projeto EJA Sal da Terra e contribui com o processo de alfabetização de adultos que estão, em maioria, entre os 35 e 60 anos de idade.
“Os desafios são constantes, porque eles têm uma vida corrida, é diferente. Trabalho, família… então, temos que dar esse apoio não só como professor, mas como amigo. Incentivando, encorajando. Criando um ambiente para que eles se sintam bem, seguros”, conta.
Um ensino que precisa ser, além de tudo, personalizado, atendendo às necessidades específicas de cada aluno. Sem ultrapassar limites, enxergando dificuldades e viabilizando processos.
“Mas é muito gratificante, a gente fica muito feliz. Tenho um aluno que é pescador, que começou a estudar porque não conseguia vender, fazer contas, passar o troco.” Outro estudante que passou pelos ensinamentos de Ana Rosa quis ser alfabetizado para aprender a escrever o nome da própria esposa. Relatos de sonhos simples, interrompidos por modos de viver que não foram escolhidos, mas sim impostos por realidades onde o básico não chega.
*Dani Fechine e Mayara Medeiros